Rogério Costa Pereira @ 02:20

Seg, 16/08/10

Todos os dias se esquece. As emoções misturam-se e atropelam-se, como num sonho mal dormido em que a vida passa asinha e aselha. Como quando se morre. Entre o ir e o vir, António mistura-se entre o que o espelho lhe mostra – lhe exige – e o sonho sonhado da realidade dos passos que admite não poder dar. No meio dos formigueiros – o da dormência e o da passagem –, confundem-se vidas e pessoas. As de cá moldam-lhe o curriculum à porrada. As de lá garantem-lhe o ser que acorda o acordar amarelo. António, espécie de homem duplicado – não como Saramago o inventou, mas como um dois-em-um que nem lava nem amacia. Entre vidas, sobrevive indeciso. Não se escolhe, encolhe-se e deixa-se ajustar pelo grão moído que o há-de trazer à realidade que lhe exigem. Como quem faz por respirar debaixo de água. A vida entre os vivos sustenta-lhe o vício do silêncio de não se saber erguer. E vive para sonhar e sonha para viver, perdido no turbilhão de quem não é. António faz registos. De mortes e vidas. E assim vive ainda uma terceira vida, a dos outros. Nasceste-me, juntei-te, apartei-te, morreste-me. Outras vidas me deste, que se hão-de juntar e separar e juntar de novo. E no fim hão-de morrer e exigir-me a mim que o certifique aos homens a quem só vejo a barbela.

Mais um café. António mede a vida por cafés. São como que um dia que se põe e um dia que se tira. O zero absoluto, reunidos naquele placebo com cara de água castanha e quente. E vai seguindo, como quem se apressa e se desvia. Para deixar passar quem vem atrás. De vela na mão a vida toda, como que numa procissão eterna. Já há muito lhe retirou o resguardo, à vela. A cera quente nas mãos é a única coisa que o segura deste lado – o cilício faz-lhe sangue e ele não gosta da cor vermelha, por isso o guarda na gaveta. E, altivo (podias ter-te agarrado aí, António), também não morre por não querer entregar o carimbo do extremo direito da sua existência aos estranhos com quem partilha as nove às cinco.

Já pensou em ter mulher, arranjar filhos, perdoar gentes, desculpar-se. Fazer um reset vital. É um palhaço, o António, e esta vida que os livros-de-bem-viver recomendam seria o nariz vermelho que lhe falta. Preso por elásticos na ponta da penca. Como se o tivesse comprado na loja dos trezentos. Uma vida arranjada nos chineses, entre lâmpadas que deitam o quadro abaixo.

António-pistola-de-água vai morrer hoje. Jurou-se. Não chegará a sofrer o café de amanhã. Atropelado pela caleche do Ega e do Carlos, António vai acordar sereno. Como um desabafo. O registo da morte ninguém o fará, coisa de colegas zangados com as horas extraordinárias não remuneradas a que serão obrigados (António carimbava muito). Agora, António, o morto, viverá para sempre. Não porque por actos valorosos do esquecimento se tenha livrado, mas por despeito.